Boletim Especial n. 39 - 13/01/2021
No Boletim n. 39, Phillip Willians Leite (USP) traz um resgate histórico sobre a epidemia de HIV/AIDS na África do Sul onde, até os dias atuais, a população negra é fortemente acometida pelo vírus. O autor discute ainda como a doença segue controlada no Brasil, país que se tornou exemplo no combate ao HIV/AIDS. Tomando como referência esse fato, ele reflete como no contexto da pandemia da Covid-19 o Brasil, com um governante autoritário e negacionista, foi incapaz de agir com a mesma precisão, ficando atrás da África do Sul. O autor conclui que o ponto de convergência entre os países, considerando especialmente o impacto de pandemias sobre a população negra e periférica, é a herança colonial que marca as políticas públicas sob o crivo do racismo, da desigualdade de gênero e das diversas violências estruturais praticadas pelo Estado.
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Sobre vírus, história e política: o HIV e o SARS-CoV-2 na África do Sul e no Brasil
Por Phillip Willians Leite
Foto: Bancos instalados em frente à High Court Civil Annex, Cidade do Cabo, local onde sujeitos eram enviados para serem classificados racialmente durante o apartheid. Arquivo pessoal do autor.
Parece-me que o problema da AIDS na África do Sul, tanto no que diz respeito à sua realidade mais etnográfica quanto em seu significado mais antropológico, só pode ser compreendido como uma problematização do mundo contemporâneo que envolve relações entre história e memória, poder e conhecimento, verdade e desconfiança, desigualdade e violência.[1] (Didier Fassin, 2007)
No livro When Bodies Remember: Experiences and Politicsof AIDS in South Africa (2007), o antropólogo Didier Fassin argumenta que a epidemia de HIV/AIDS na África do Sul forneceu uma espécie de contraponto à história alegre da reconstrução nacional pós-apartheid[2]. Em contraste com as promessas de união nacional e igualdade, a epidemia revelou um país afligido por uma série de injustiças, herdadas do regime de segregação radical. Como mostra o autor, um passado de racismo institucional modelou a evolução da epidemia no país, fato que alerta para a necessidade urgente de os cientistas sociais serem levados à sério quando apontam a interrelação entre desigualdades, violências e saúde pública não somente em contextos de emergência, como a crise sanitária mundial causada pelo SARS-CoV-2.
A resposta sul-africana ao HIV/AIDS foi cercada por controvérsias, sendo a principal delas o escândalo internacional causado pelo questionamento do governo a respeito das origens da AIDS.: Os comentários do presidente Thabo Mbeki sobre a pobreza como uma das raízes da doença irritaram cientistas em todo o mundo[3]. Para analisar essa e outras polêmicas, Fassin (2017) propõe um retorno ao passado. O antropólogo mostra como a infecção pelo vírus seguiu os caminhos desiguais traçados pelo apartheid e indica que a resposta do governo sul-africano só pode ser entendida levando em conta a brutal desigualdade racial[4] e as desconfianças sociais produzidas pela segregação, que permaneceriam ditando o desenrolar dos acontecimentos do presente, como a epidemia de HIV/AIDS. Um dos exemplos disso seria o fato de que, a despeito da ideia propagada no início da epidemia de que o vírus não discriminava na hora de infectar alguém, a maior parte dos contaminados na África do Sul foram – e continuam sendo – cidadãos sul-africanos blacks.[5][6].
Enquanto a África do Sul enfurecia epidemiologistas, do outro lado do Atlântico, o Brasil era elogiado por sua estratégia corajosa e inovadora no combate ao HIV/AIDS, que foi por muito tempo considerada um modelo. Ainda em 1986, foi instituída a Comissão Nacional de AIDS, marco decisivo da luta brasileira contra a epidemia, construída conjuntamente com a comunidade científica, órgãos do governo e organizações não-governamentais. A resposta do Brasil ao vírus está inscrita no contexto de redemocratização do país, momento marcado também pelo nascimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e de uma série de outras ações visando a redução das desigualdades, em consonância com os objetivos da Constituição de 1988.
Se a epidemia de HIV/AIDS revelou as dificuldades sul-africanas em implementar os direitos previstos em sua carta constitucional[7], promulgada em 1996 e considerada uma das mais progressistas do mundo[8], o esforço e relativo sucesso brasileiro em frear o avanço da epidemia poderiam ser lidos como parte da feliz história de um país que, como a África do Sul, também passou por um processo de transição democrática no final do século XX que tinha como cerne o combate às desigualdades estruturais. Entretanto, uma nova pandemia, a do SARS-CoV-2, mostrou a persistência e a onipresença de injustiças históricas no Brasil, reforçadas pela inépcia do governo federal no combate ao novo coronavírus.
O primeiro caso confirmado de infecção por Covid-19 no Brasil ocorreu em 26 de fevereiro de 2020 e foi reportado pelo Hospital Israelita Albert Einstein, um dos mais exclusivos do país. O paciente era um homem que havia voltado de uma viagem para a Itália, país até então foco da doença. Até o momento, o vírus vitimou mais de 175.000 pessoas[9], e continua se espalhando pelo país. Contudo, a atitude do governo diante da mais recente emergência sanitária global não lembrou em nada o pioneirismo do país no combate ao HIV/AIDS.
Quando os primeiros casos de Covid-19 apareceram no Brasil, especialistas tentaram tranquilizar a população, apontando que o SUS, a despeito de cortes no investimento, é muito capilarizado e possui grande expertise, de reconhecimento internacional, na área de epidemiologia[10]. A infraestrutura e o conhecimento científico, contudo, não foram suficientes frente à incapacidade política do governo de extrema-direita. Ao longo da pandemia, o presidente brasileiro negou a gravidade da doença, demonstrou pouca empatia com os mortos, recomendou tratamentos sem comprovação científica e transformou a busca por uma vacina em uma briga política partidária[11]. Nesse cenário de descaso, as injustiças estruturais que permeiam a sociedade brasileira deram o tom da infecção: pretos e pardos tiveram um número proporcionalmente maior de óbitos do que brancos[12]; os mais pobres e moradores de regiões sem infraestrutura sofreram mais com a doença[13]; o vírus continuou o caminho de séculos de extermínio de povos indígenas[14]; e o isolamento social levou a um aumento nos casos de violência doméstica[15].
Ao contrário do Brasil, a África do Sul, localizada em um continente que, temia-se, seria devastado pela doença, tomou medidas que receberam elogios da Organização Mundial da Saúde (OMS)[16]. O governo alertou desde o princípio sobre a gravidade da pandemia, implementou um lockdown nacional e o presidente Cyril Ramaphosa emitia mensagens rotineiras à população pela televisão, comentando sobre os esforços que todos deveriam fazer para impedir o avanço do vírus. A resposta sul-africana, contudo, também despertou uma série de problemas, como a violência policial usada para fazer com que as populações cumpram as regras de isolamento[17] e o agravamento de tensões raciais[18]. Além disso, o perfil da vítima principal do novo coronavírus é um velho alvo da política racista que moldou a história do país: sul-africanos blacks[19].
No meio das dúvidas provocadas pela pandemia do SARS-CoV-2, uma coisa é certa: o desenrolar das epidemias na África do Sul e no Brasil está diretamente relacionada à história de duas nações atravessadas pela herança do colonialismo, do racismo, das desigualdades de gênero e de outras múltiplas violências. Por isso, além de avaliar a resposta de cada país de acordo com a régua das ciências médicas, é necessário pensar como determinados passados historicamente desiguais continuam presentes, assombrando o futuro e dando forma aos caminhos que o vírus e suas doenças tomam ao se espalharem pelo mundo.
Phillip Willians Leite é mestrando em Antropologia Social no PPGAS/USP e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença do Departamento de Antropologia da USP (NUMAS/USP). Desenvolve pesquisa sobre (homos)sexualidade, raça, gênero e militarismo na África do Sul do apartheid com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), sob processo nº 2019/04296-8.
Notas:
1. Tradução do autor.
2. O apartheid foi um regime de segregação racial que esteve em vigor na África do Sul entre 1948 e 1994.
3. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2000/jul/10/sarahboseley1. Acesso em: 12/12/2020.
4. Para uma análise sobre a violência e as desigualdades raciais, sexuais e de gênero na África do Sul, ver Matebeni (2017) e Borges (2020).
5. Seguindo Moutinho (2012), utilizo nesse texto as nomenclaturas raciais conforme utilizadas na África do Sul. O serviço nacional de estatísticas sul-africano trabalha com as seguintes categorias raciais: Black African, Coloured, Indian/Asian, White e Other.
6. Um estudo detalhado sobre os diferentes níveis de infecção por HIV de acordo com grupo racial na África. Disponível em: https://equityhealthj.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12939-019-1055-6. Acesso em: 12/12/2020.
7. Uma discussão sobre a epidemia da AIDS na África do Sul pode ser encontrada em Moutinho (2015).
8. Para mais informações sobre a constituição sul-africana, confira Moutinho, (2012).
9. Número registrado em 03/12/2020, segundo o consórcio de veículos de imprensa. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/12/03/casos-e-mortes-por-coronavirus-no-brasil-em-3-de-dezembro-segundo-consorcio-de-veiculos-de-imprensa.ghtml. Acesso em: 03/12/2020.
10. Disponível em: https://exame.com/brasil/deisy-ventura-da-usp-brasil-esta-preparado-para-lidar-com-coronavirus/. Acesso em: 12/12/2020.
11. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2020/07/01/brasil-falhou-em-todos-os-aspectos-na-resposta-a-pandemia-diz-especialista-da-usp.htm. Acesso em: 12/12/2020.
12. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2020/05/na-pandemia-de-covid-19-negros-morrem-mais-do-que-brancos-por-que.html. Acesso em: 12/12/2020.
13. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/covid-19-mais-letal-em-regioes-de-periferia-no-brasil-1-24407520. Acesso em: 03/12/2020.
14. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/coronav%C3%ADrus-avan%C3%A7a-sem-controle-na-maior-reserva-ind%C3%ADgena-do-brasil/a-55666066. Acesso em: 03/12/2020.
15. Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/depeso/330059/violencia-domestica-no-contexto-da-pandemia-do-covid-19. Acesso em: 12/12/2020.
16. Disponível em: https://www.afro.who.int/news/who-encouraged-south-africas-declining-covid-19-trend. Acesso em: 12/12/2020.
17. Disponível em: https://www.dw.com/pt-002/%C3%A1frica-do-sul-pol%C3%ADcia-imp%C3%B5e-confinamento-com-viol%C3%AAncia/a-53009519. Acesso em: 13/12/2020.
18. Disponível em: https://foreignpolicy.com/2020/06/12/south-africa-coronavirus-pandemic-racial-tensions/. Acesso em: 03/12/2020.
19. Disponível em: https://www.sanews.gov.za/south-africa/black-africans-coloureds-and-males-likely-die-covid-19. Acesso em: 09/12/2020.
Referências:
BORGES, Antonádia. Very rural background: os desafios da composição-terra da África do Sul e do Zimbábue à chamada educação superior. In: Revista de Antropologia, v. 63 n. 3: e178183, 2020. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/178183. Acesso em: 12/12/2020.
FASSIN, Didier. When bodies remember: experiences and politics of AIDS in South Africa. Berkeley: University of California Press, 2007.
MATEBENI, Zethu. Perspectivas do Sul sobre relações de gênero e sexualidades: uma intervenção queer. In: Revista de Antropologia, v. 60, n. 3, pp. 26-44, 2017. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/141826 . Acesso em: 12/12/2020.
MOUTINHO, Laura. Sobre danos, dores e reparações: the moral regenaration movement: controvérsias morais e tensões religiosas na ordem democrática sul-africana. In: Wilson Trajano Filho. (Org.). Travessias antropológicas: estudos em contextos africanos. Brasília: ABA, 2012, p. 10-36.
MOUTINHO, Laura. Sobre concepções de saúde e doença: a epidemia da Aids na África do Sul. In: SANTOS, Patricia Teixeira. (Org.). África e Brasil: reflexões em torno da sexualidade, do gênero e dos sentidos culturais e políticos da doença. Curitiba: Positivo, 2015, v. 3, p. 52-73.
MOUTINHO, Laura; AGUIÃO, Silvia; NEVES, PAULO S. C. A construção política das interfaces entre (homos)sexualidade, raça e aids nos programas nacionais de direitos humanos. In: Ponto Urbe, n. 23, 2018. pp. 1-26 Disponível em: https://journals.openedition.org/pontourbe/5534. Acesso em: 12/12/2020.
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Este texto é parte de uma série de boletins sequenciais sobre a questão étnico-racial em tempos de crise que está sendo publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.
A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).
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