- Criado: 15 Janeiro 2021
Boletim Especial n. 41 - 15/01/2021
No Boletim n. 41, Ana Laura Lobato (Unicamp) relata a experiência de visitação ao museu “National Memorial for Peace and Justice”, inaugurado em 2018, na cidade de Montgomery, capital do estado do Alabama, sul dos Estados Unidos. Trata-se de um memorial dedicado às pessoas assassinadas por lichamento nesse estado americano. A autora discorre sobre a prática dos linchamentos como parte das diferentes formas de discriminação e violência perpetradas contra a população negra americana e reflete sobre as possíveis semelhanças com a violência praticada no Brasil contra negros e negras, também por meio de linchamentos.
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Como podem as visitas a museus e memoriais impulsionarem pesquisas acadêmicas?
Por Ana Laura Lobato
Foto: “National Memorial for Peace and Justice”, junho de 2019. Arquivo pessoal da autora.
Em abril de 2018 fora inaugurado, em Montgomery, capital do estado do Alabama, no sul dos Estados Unidos, um memorial que lembra as mais de 4 mil pessoas linchadas naquele país entre final do século XVIII e meados do XX. Naquele mesmo período, eu me deparava com os anseios de como abordar um tema tão sensível em minha pesquisa de doutorado.
De toda a bibliografia sobre linchamento que havia encontrado até aquele momento no Brasil[1], as principais fontes dos estudos eram as notícias de jornais. As primeiras obras da literatura americana[2] às quais tinha tido acesso também mencionavam, desde o final do século XVIII, as notícias de jornais como principal fonte de denúncia e documentação sobre os casos de linchamento naquele país.
A imagem de um memorial, portanto, me pareceu totalmente surpreendente. Sem roteiros, notas de leitura, gravador ou qualquer outra “ferramenta” de pesquisa de campo em mãos, munida apenas de uma máquina fotográfica e uma curiosidade imensa, aproveitei uns dias de uma viagem a outro estado americano para ir visitar o “National Memorial for Peace and Justice” em junho de 2019.
A experiência de visitação ao memorial é incrível. Além disso, muito do processo de produção das informações estava também relatado e um tanto da história racial daquele país também era narrada nos murais do memorial de forma a contextualizar as condições sociais, políticas, culturais e históricas em que esta forma de punição fora possível de existir por tanto tempo com a conivência do Estado.
O memorial é constituído por um grande jardim mantendo o ambiente sempre silencioso em contraste com as impactantes imagens que cada nome inscrito nas placas de ferro evoca. Num trecho específico do percurso, há placas com nomes, locais, datas e uma pequena descrição da motivação pela qual aquela pessoa fora linchada. É preciso tempo e muita serenidade para seguir no trajeto do memorial sem se deixar ser tomada pelas emoções ao horror que aquelas mortes representam. Lembro-me particularmente da história de um garoto negro que foi linchado por ter dirigido a palavra a uma mulher branca em via pública.
Para cada fato ou elemento novo desta história violenta eu me perguntava o que teríamos de semelhante a isso no Brasil. Seria a prática do linchamento em si um fenômeno radicalmente distinto no Brasil? De que maneira a história racial americana singulariza a narrativa sobre os linchamentos lá ou nos provoca a deslocar os entendimentos dos linchamentos aqui (até então não definido como um fenômeno racial)? O que a história racial brasileira pode iluminar sobre as práticas contemporâneas de punição e vingança?
A constituição de museus e memoriais tem sido marcada fundamentalmente pela necessidade de manter viva as memórias. Nos casos de processos marcados por violência, estes espaços têm uma dupla função de lembrar e também de evitar que se repitam[3]. Nos documentos publicados pela instituição mantenedora do “National Memorial for Peace and Justice”, a Equal Justice Initiative, o linchamento é narrado como um terror da história racial americana. É um processo postulado como um backlash do fim da escravidão tal e qual é o encarceramento em massa para as conquistas dos movimentos pelos direitos civis. A memória dos linchamentos parece querer ter uma função ainda mais perspicaz no imaginário social contemporâneo ao se situar dentre as diferentes formas de discriminação e violência que ao longo do tempo foram perpetradas contra a população negra americana. Ela se apresenta também como uma fonte possível de reconciliação histórica.
Mas de que maneira tudo isso nos ajuda a entender não só o fenômeno do linchamento no Brasil, mas também suas formas de representação, os tipos de linguagens e imagens que são utilizados para representá-lo? Será possível tratar o linchamento como um fenômeno racial no Brasil - quando sequer a escravidão é notória em nossas memórias e testemunhos - para atualizar os entendimentos sobre as formas de racismo contemporâneo?
Dentre as perguntas todas que fui me fazendo sobre como abordar este fenômeno aqui, a partir do que vi e li sobre lá, algumas são sobre outras formas de representação para além das notícias e encontrei até agora um documentário, uma peça de teatro, uma exposição de esculturas e um livro de imagens produzidas a partir de postais e vídeos de linchamentos. Neste momento, os dilemas da pesquisa são sobre como lidar com tão diferentes tipos de documentos. Mas aí já é outra parte da história.
Ana Laura Lobato é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/ Unicamp).
Notas:
1. Em sua maioria produzida entre os anos 1980 e 1990 no contexto da redemocratização.
2. Me refiro principalmente a Ida B.Wells (2014) que iniciou sua carreira como jornalista denunciando casos de linchamento em jornais na década de 1880 e Amy Chazkel (2017) que analisou a presença do termo linchamento na imprensa brasileira entre 1880 e 1920.
3. Refiro-me particularmente a memoriais como os do Holocausto, do apartheid, das ditaduras etc.
Referências:
DE SOUZA MARTINS, J.. Linchamentos: a justiça popular no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.
INITIATIVE, E. J. (ed.) Lynching in America: confronting the legacy of racial terror. Montgomery: Equal Justice Initiative, 2015.
PFEIFER, M. J. (ed.). Global lynching and collective violence. vol. 2. The Americas and Europe. University of Illinois Press, 2017..
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Este texto é parte de uma série de boletins sequenciais sobre a questão étnico-racial em tempos de crise que está sendo publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.
A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).
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